Revista de Estudos

Anglo-Portugueses n.28

Editorial

No presente número, retoma-se, com novo ímpeto, a análise das relações luso-britânicas ao tempo da Guerra Peninsular, época que já
originou múltiplos trabalhos no âmbito da investigação em Estudos Anglo-Portugueses, com três novos artigos: o primeiro, da autoria
de Gabriela Gândara Terenas, reporta-se à imagem dos britânicos na poesia portuguesa sobre a Guerra e os seus protagonistas britânicos, sob o título “ ‘From Britannic Heroes to the Glorious Alliance’: (Re)Configurations of the British in Portuguese Peninsular War Poetry (1808-1814)”. O segundo diz respeito à viagem que os Holland realizaram ao país durante a mesma época, evocada em “John Russell’s Visits to Portugal in 1808-9, 1810, 1812 and 1814, with a Fragment of a Journal of his Expedition in 1809”, um artigo da autoria conjunta de John Clark e de José Baptista de Sousa, que remete o leitor para figuras que marcaram o período em apreço, como o General Nicholas Trant (Governador de Coimbra e do Porto) ou William Carr Beresford (Marechal do Exército português). A importância dos Holland em Portugal, referida neste último artigo, originou recentemente a publicação do estudo Holland House and Portugal. English Whiggery and the Constitutional Cause in Iberia (2018), objecto de uma recensão crítica, da autoria de Miguel Alarcão, incluída na última secção do presente número da Revista. Finalmente, o terceiro artigo, intitulado “Da Estética da Sujidade às Paisagens Culinária, Monumental e Religiosa: Representações de Portugal em Guerra durante a Visita de Lord Byron (1809) no Diário de Viagem de John Cam Hobhouse”, de Rogério Miguel Puga, tendo como objecto de estudo o relato de viagens de Cam Hobhouse, centra-se, todavia, na representação de diferentes tipos de paisagem, através da “estética da sujidade”, não raro em contraponto com a “paisagem gastronómica”, como forma de afirmação da superioridade britânica em relação aos povos do Sul da Europa, bem como da sua condição destes últimos, vistos como quase “mártires” perante a extrema pobreza decorrente da Guerra Peninsular.
As temáticas da Guerra e da Viagem continuam a marcar os Estudos Anglo-Portugueses. Desta feita, trata-se da Guerra Civil de Espanha, a propósito da qual Ralph Fox passa por Lisboa, ao tempo  do Estado Novo, tal como Paul Melia descreve, em “Ralph Fox’s
Exposure of Portuguese Military Support for Spanish Nationalism and British Wilful Ignorance”. Tendo como ponto de partida o relato
Portugal Now (1937) – já estudado, aliás, no número 18 (2009) desta Revista – o autor desenvolve a temática mediante o cruzamento de múltiplas fontes, no sentido de avaliar o funcionamento da Aliança Luso-Britânica no âmbito de uma política de não-intervenção na
Guerra Civil de Espanha, determinada pelo Governo de Londres, mas em relação à qual Salazar mantinha muitas reservas.
A temática da viagem surge, neste número, sob múltiplas formas. Relacionado, em grande medida, com as viagens de britânicos a
Portugal, encontra-se o Projecto de Carlos Ceia, “Portugal: Abroad”, apresentado pela primeira vez no número 19/2010 da Revista, sob
o título “Imagens de Portugal na Ficção Contemporânea”, ao qual se dá continuidade neste exemplar mediante a análise de mais uma
narrativa ficcional, The High Mountains of Portugal (2016), da autoria de Yann Martel. Trata-se de um “romance phantastico” inspirado
na passagem do viajante por Portugal, onde se ficcionaliza, de forma algo surpreendente, a memória do país visitado. Aguardam-se, com expectativa, mais contributos para este Projecto que constituirá, sem dúvida, uma prestigiante mais-valia para o avanço do conhecimento em Estudos Anglo-Portugueses. O mesmo se verifica, aliás, com o Catálogo Porto Sentido de Fora, Livros e Guias de Viagem sobre o Porto entre a Monarquia Constitucional e o Estado Novo / Porto Felt from Afar – Travel Books and Guide books about Porto during the Constitutional Monarchy and the ‘Estado Novo’ (1820-1874), da autoria conjunta de Elisa Cerveira, Emília Dias da Costa e Vasco Ribeiro, objecto de uma recensão crítica, da autoria de João Paulo Ascenso Pereira da Silva, inserida na última secção da Revista. Neste caso, deve sublinhar-se, por um lado, o cariz intencionalmente propagandístico da escrita de viagens durante o Estado Novo e, por outro, as referências a relatos de visitantes anglófonos ao país, com passagem obrigatória pela cidade do Porto, que se encontram ainda por estudar, constituindo, assim, matéria para investigações futuras. Pistas para novos trabalhos encontram-se também no inventário de poemas dedicados a D. Catarina de Bragança, apresentado por Maria da Conceição Castel-Branco, na
secção de Projectos, sob o título “Poesia Inglesa sobre D. Catarina de Bragança, Rainha de Inglaterra”.
A história das relações luso-britânicas tem vindo a ser construída desde há muito, nomeadamente nas páginas desta Revista, mas,
obvia e felizmente, há sempre novas descobertas que fazem realmente avançar o conhecimento, mediante contributos de grande
valia. Os artigos de Miguel Alarcão e de Malyn Newitt, embora completamente distintos, constituem, pela sua novidade, casos paradigmáticos. Em “Uma Santa e Três Cavaleiros: a Propósito da Igreja Paroquial do Lumiar”, Miguel Alarcão reconstitui a viagem de uma Santa irlandesa do tempo dos celtas, ou seja, do início da evangelização das Ilhas Britânicas, até à Igreja do Lumiar, em Lisboa, onde permanece a imagem de Santa Brígida ou a “Maria dos celtas”. Por seu turno, em “The Rise and Decline of Porto Grande (Cabo
Verde): a Microcosm of Anglo-Portuguese Relations”, artigo baseado, na sua essência, em fontes existentes nos arquivos de Kew, Melyn
Newitt apresenta uma investigação que vem dar conta de episódios praticamente desconhecidos até agora, respeitantes às relações luso–britânicas, sobretudo as de cariz económico-social, ocorridos entre 1781 e 1943, no Mindelo, Cabo Verde, considerada uma das cidades portuguesas mais importantes do Atlântico nas primeiras décadas do século XX. Não obstante alguns contributos de valor já existentes, um estudo aturado sobre o pensamento dos lusófilos britânicos ao tempo da Primeira República, nomeadamente Aubrey Bell e Edgar Prestage, continua ainda por fazer. Nesse sentido, o artigo de João Paulo Ascenso Pereira da Silva – “Aubrey Bell and Portugal of the Portuguese (1915): a Preview of the Future of Portugal in the Political Turmoil of the First Republic” – vem, em grande medida, contribuir para colmatar essa lacuna, através de um trabalho aprofundado sobre a figura do primeiro, tendo como ponto de partida a obra Portugal of the Portuguese, uma conjugação de um relato de viagens com um texto de cariz propagandístico, na qual o autor oferece uma imagem algo polémica do país ao tempo da instauração do novo regime político.
Espera-se que uma investigação aumentada e, sobretudo, de conjunto possa vir efectivamente a colmatar aquela lacuna num futuro
próximo. As relações de interdependência entre os Estudos Anglo-Portugueses e o Estudos de Tradução (sempre que envolvem as línguas portuguesa e inglesa) já foram definidas em números anteriores da Revista e amplamente demonstradas mediante a publicação de vários textos. Neste número, essa correlação sai reforçada com mais dois artigos: “Tradução e Re-IMAGE[I]nação como Locus e Foco Central em The Adventures of Tom Sawyer”, da autoria conjunta de Susana Amante, Véronique Delplancq, Ana Costa Lopes e Susana Relvas, e “Dialect Usage in Sophia’s Secret Translation” de Jorge Almeida e Pinho. No primeiro, as autoras, partindo dos conceitos de representação e reconstrução de imagens, interligam os Estudos Anglo-Portugueses, a Literatura Infanto-Juvenil e os Estudos de Tradução. Analisando, de uma perspectiva comparatista, duas traduções portuguesas de The Adventures of Tom Sawyer, o artigo discute criticamente as estratégias adoptadas pelos diferentes tradutores, equacionando o modo como são transmitidas ideias relacionadas com a percepção da identidade e da alteridade, da raça e do multiculturalismo, defendendo que a tradução se institui como um espaço de mediação intercultural.
No segundo, o autor/tradutor dá conta das dificuldades encontradas na tradução do dialecto escocês “Doric”, presente no texto de partida, para português, bem como das imposições editoriais que, não raro, condicionam de forma radical as opções do tradutor. A procura de uma forma de transpor o dialecto escocês para o contexto cultural português conduz necessariamente não só a uma comparação entre os dois sistemas linguístico-culturais envolvidos, mas também a uma (re)construção da imagem do Outro, constituindo igualmente um contributo de valor para o enriquecimento dos Estudos Anglo-Portugueses.
As múltiplas confluências de anglofilias e lusofilias encontram, porventura, o seu expoente mais heterogéneo, tanto do ponto de
vista das obras e dos autores estudados como das épocas e dos locais abrangidos, nos livros de “Paul Melo e Castro e Cielo G. Festino (eds.), A House of Many Mansions: Goan Literature in Portuguese: An Anthology of Original Essays, Short Stories and Poems, Under the Peepal Tree-Muse India, Margão (Goa), 2017” e de “Jorge Bastos da Silva, Anglolusofilias: Alguns Trânsitos Literários. Porto: Edições Afrontamento/Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, 2018”, ambos objecto de recensões críticas da autoria de Rogério Miguel Puga e Iolanda Ramos, respectivamente.
O presente número é dedicado à memória do Professor Doutor George Monteiro, da Universidade de Brown, recentemente falecido,
que, com grande empenho, simpatia e profissionalismo, desempenhou o cargo de peer reviewer desta Revista, desde 2004 até 2017. Aqui fica o nosso reconhecido agradecimento.
Por fim, cumpre recordar que, no próximo ano, se evoca o bicentenário da Revolução Liberal. Pelas suas importantes ligações à GrãBretanha, o número 29 da REAP/JAPS, de 2020, será, pela primeira vez na história da Revista, um número temático dedicado exclusivamente às relações luso-britânicas ao tempo do liberalismo (da Revolução de 1820 à Restauração da Carta Constitucional, em 1842).

30 de Setembro de 2019
Gabriela Gândara Terenas